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Guia da Feminista Lésbica de como lidar com as merdas ditas por feministas héteros – Maria Luíza Schreiner

Baseado nesse guia sensacional, elaborado por Maisha Z. Johnson, traduzido por Isabelle Brasil, duas feministas negras incríveis – o qual eu, desde já recomendo a leitura – resolvi elaborar um “Guia da Feminista Lésbica de como lidar com as merdas ditas por feministas héteros”.

 

Guia de uma feminista lésbica de como (tentar) lidar com as merdas ditas por feministas héteros

 

Esse guia é uma tentativa, a um tempo, de dialogar com outras feministas lésbicas, que podem ou não ter passado por situações lesbofóbicas parecidas com as que eu passei. Mas ele também é uma tentativa de dialogar e descontruir certas coisas que as feministas héteros falam cotidianamente, muitas vezes sem se dar conta do quanto são lesbofóbicas. Ele, obviamente, não encarna uma “verdade lésbica” – já que isso não existe -, mas ele parte das minhas vivências e experiências como lésbica dentro do feminismo, na tentativa de levantar algumas reflexões possíveis.

Recentemente passei por uma crise tão grande com o feminismo que cheguei ao ponto de me perguntar se vale a pena continuar lutando para pertencer a um movimento político que historicamente rechaçou, silenciou, desempoderou e apagou mulheres lésbicas. Me perguntei se vale a pena participar de um movimento político que se solidariza tão pouco com as minhas lutas e as minhas necessidades como lésbica, que ouve tão pouco a minha voz como mulher lésbica, que respeita tão pouco os epistemas lésbicos.

Mas não existe feminismo sem lesbiandade, não porque todas as feministas devam ser ou “se tornar lésbicas”, mas sim porque sem crítica da heteronorma, da heterocompulsoriedade, do heteropatriarcado, não faz sentido falar em feminismo.

Não existe libertação da mulher, sem libertação da imposição histórica de papéis binários e limitantes de gênero. Não existe libertação da mulher sem uma historicização radical do desejo – hegemonicamente heterossexual – como o conhecemos hoje. Não existe libertação da mulher dentro de um epistema liberal que aceita como um dado a hegemonia hétero, ignorando que ela, nesse continente, está intrinsecamente ligada à colonialidade, ao estupro sistemático de mulheres negras e indígenas, à destruição violenta de epistemas indígenas menos binários, menos patriarcais e menos hétero/cisnormativos, à imposição violenta da família nuclear cristã patriarcal, que substituiu, à força, todas as outras formas comunitárias de organização social e à(s) forma(s) (diferentes entre si) como mulheres brancas, negras e indígenas foram forçadas a lidar, negociar e barganhar com a violenta hegemonia do homem branco hétero colonizador. Não existe feminismo sem essas reflexões, razão por que não existe feminismo sem mulheres lésbicas.

Então o feminismo precisa parar de nos silenciar, apagar, isolar, “gaslaitear” e precisa começar a ouvir certas críticas que só podem partir do nosso lugar de fala e das nossas vivências. Vamos começar abolindo algumas frases campeãs de lesbofobia:

 

  1. Por que você quer me convencer a virar lésbica?

 

O pavor que as feministas héteros nutrem de que meu discurso, minha atitude de me colocar como lésbica no mundo e no movimento feminista, de falar abertamente sobre minha experiência como lésbica, a partir do meu epistema, seja uma tentativa aberta ou sub-reptícia de “transformá-las em lésbicas” faz com que elas digam todo o tipo de coisa lesbofóbica.

Creio que parte do pavor advém do fato de que elas percebem boa parcela das contradições dos relacionamentos héteros, da dificuldade dos homens em descontruírem seu machismo e da limitação estrutural deles em o fazerem. O problema é que não há uma reflexão séria e profunda de como lidar com essas contradições.

Isso porque as posições hegemônicas são sempre tidas como neutras, objetivas, “normais”, desse modo, enquanto os negros e negras refletem sobre os múltiplos significados da negritude, os brancos agem como se sua branquitude e os privilégios que dela advém não existissem; enquanto as mulheres refletem sobre a feminilidade e sobre como isso é um importante traço de uma determinada forma de subjetivação, os homens agem como se a masculinidade e os privilégios que dela advém não fossem relevantes; do mesmo modo, enquanto as lésbicas refletem sobre o ser lésbica em um mundo profundamente heterossexista, heteronormativo, heterocompulsório, as héteros sempre agem como se a heterossexualidade delas não fosse uma variável a ser considerada.

Quando nós lésbicas passamos a falar como lésbicas, a partir de nossos próprios epistemas e vivências, isso balança a sensação de que a experiência e o epistema delas são universais, objetivos, neutros, os únicos possíveis.

E não é só isso. Embora a maior parte das héteros esteja familiarizada com o conceito de heteronormatividade, elas têm dificuldade de levar esse conceito radicalmente a sério. Porque isso significaria ter de admitir que todos os desejos e experiências que encaramos como genuínos, reais, individuais e significativos são moldados e significados por uma norma cultural muito forte que perpassa e constitui cada um dos sujeitos e lhes prescreve não só a heterossexualidade em si, mas articula uma rede complexa e imbricada de lógicas, chaves interpretativas, comportamentos, epistemas profundamente binários e heterossexistas, dos quais é muito difícil, se não impossível, nos desvencilharmos completamente. Sem dúvidas isso desnaturalizaria a heterossexualidade em níveis tão profundos e radicais que talvez elas não estejam dispostas a fazê-lo.

 

  1. Tudo bem, tudo bem, não duvido da heteronorma, mas pare de falar sobre isso, nem todas as mulheres são héteros por causa da heteronorma

 

Quando feministas héteros dizem isso, o que elas querem dizer é: a heteronorma não é tão importante assim em nossas vidas, realidades e subjetividades quanto você quer fazer parecer. Ou, para colocá-lo de outra maneira: algumas de nós somos inteligentes e independentes o suficiente para não nos deixarmos afetar pela heteronorma. Algumas de nós somos “imunes” a ela.

Evidentemente o desejo sexual é uma contingência. Evidentemente algumas pessoas, em grau maior ou menor, estão razoavelmente cientes de que são contingencialmente desviantes da norma, mas submetem-se a ela mesmo assim – a dita repressão sexual. Evidentemente esse não é o caso de todas e cada uma das pessoas héteros que habitam esse planeta, já que cada sujeito lida com uma injunção de maneira (mais ou menos) única e singular.

Mas a repressão sexual não é o único modus operandi da heteronorma. Quem, por se julgar pouco ou nada reprimido sexualmente, se achar imune à heteronorma, não entendeu nada.

O desejo é uma contingência, mas ele não é uma contingência ahistórica, pairando acima da cultura, fora da sociedade. Ele é uma contingência social, histórica e culturalmente construída. Desde a mais tenra idade sobre educadas para aceitar um certo modelo de feminilidade, um certo padrão de como um corpo feminino (dócil) deve ser, um certo modelo comportamental, uma determinada forma de desejo. Essa educação é majoritariamente persuasiva e apenas eventualmente repressiva. O desejo não é só algo que essa sociedade reprime de determinadas maneiras, mas que ela constrói de determinadas maneiras.

Desse modo, o raciocínio de que “nem todas as héteros são héteros por causa da heteronorma” – que escamoteia o raciocínio subjacente de que algumas héteros seriam “héteros de verdade”, em contraposição às héteros que não são “de verdade” – não só é incorreto, ele é absurdo! Ele ignora o caráter construtivo – no sentido de que constrói, molda algo – e evidencia apenas o caráter repressivo da heteronorma.

E ao fazê-lo ele só quer simplificar, desvalorizar a importância da heteronorma e, por conseguinte, silenciar e desqualificar as críticas de feministas lésbicas.

Dizer que algumas héteros são héteros “de verdade” não só nivela o debate por baixo, através de simplificações ingênuas, como também serve para manter o privilégio hétero intacto, na medida em que normaliza, torna neutra, objetiva a heterossexualidade – ou pelo menos a heterossexualidade “de verdade”, aquela que seria imune à heteronorma, aquela que seria uma “verdadeira” expressão de um desejo jamais “reprimido” (e nem moldado).

 

  1. A questão do comitê das héteros as sobre a reação das lésbicas

 

Héteros precisam parar de auto-organizar comitês para julgarem a reação das lésbicas à lesbofobia. Reações como “mas ela deveria ter sido mais paciente”, “eu entendi o que ela [a hétero que falou algo lesbofóbico] quis dizer [deixando implícito que a lésbica que reagiu não havia entendido errado]”, “foi um mal entendido”, “mas que exagero” precisam acabar.

Reações como essas além de silenciar e desempoderar as mulheres lésbicas, reforçam a idéia de que o epistema hétero ocupa, a um tempo, o pólo positivo e neutro da relação de poder – positivo porque nunca ofensivo, nunca impaciente, nunca errado, e neutro, porque apto a se autojulgar nunca ofensivo, nunca impaciente, nunca errado. Para nós lésbicas resta inevitavelmente o pólo negativo dessa relação. Somos gritonas, impacientes, grosseiras e exageradas. Aceitar isso é equivalente a deixar uma cabra cuidando de repolhos e esperar, sinceramente, que esse arranjo funcione!

Quando alguma mulher hétero emite uma “opinião” de que uma lésbica – que estava protestando, reclamando de uma atitude lesbofóbica – está sendo “muito alguma coisa”, ela parte do pressuposto – e é socialmente validada por e para tanto – de que cabe a ela decidir em qual exata medida a indignação de uma mulher face à opressão e à exploração é aceitável.

Ademais, até que ponto a exigência de que sejamos “pacientes” e “didáticas” não é mais uma forma de nos silenciar, nos explorar, nos apagar, nos deslegitimar? Se lésbicas são sobrecarregadas com lesbofobia todos os dias, nos exigir que sejamos pacientes e didáticas não é exigir o impossível? E exigir o impossível não é tornar virtualmente impossível a nossa fala? Não é uma forma de proibir-nos de falar sem ter que fazer isso declaradamente, mas o fazendo na prática? Se eu só posso falar desde que seja didática e paciente e as condições materiais de lesbofobia sistemática e diária minam completamente toda a minha paciência e meu didatismo, isso não é uma forma de concretamente cercear minha possibilidade de fala? Será que se as mulheres héteros estivessem na nossa pele não seriam mais impacientes ainda? Será que agüentariam o que estão nos exigindo que aguentemos?

 

  1. Se orientação sexual fosse escolha, ninguém gostaria de homens

 

Essa é uma piada que muitas mulheres héteros gostam de fazer para demonstrar o quanto são aliadas das mulheres lésbicas e o quanto são críticas das relações heterossexuais e suas assimetrias historicamente construídas.

Essa “piada” tem tantos problemas que eu nem sei por onde começar.

Em primeiro lugar, essa é uma sociedade tão lesbofóbica que mulheres héteros se sentem a vontade para dizer que seriam lésbicas se “pudessem”, ao mesmo tempo que mulheres lésbicas são espremidas em uma condição material e subjetiva tal que se vem obrigadas a dizer que “se pudessem ter escolhido, não teriam escolhido ‘sofrer’ [em que sofrer é sinônimo de ser lésbica]”. Sim, provavelmente tem uma mulher lésbica dizendo ou pensando isso agora. Sim, muitas de nós precisamos reforçar a contingencialidade de nossa identidade como mecanismo (consciente ou inconsciente) de defesa. Em vez de celebrar simplesmente quem nós somos, precisamos nos desculpar, dizendo “foi sem querer”, “não posso evitá-lo”, como se estivéssemos fazendo algo de errado.

Nesse contexto, quando uma mulher hétero diz que seria cool ser lésbica, esse é só o último grau de apagamento, silenciamento e fetichização a que as mulheres lésbicas estão submetidas. Enquanto mulheres lésbicas são sistematicamente punidas e privadas de vivenciar sua sexualidade de forma livre e saudável, uma mulher hétero não tem o menor direito de sair tratando nossa sexualidade como uma “experiência” fetichizada e idealizada.

Ademais, essa é só mais uma forma – lesbofóbica – de reabilitar a dependência da masculinidade no interior do feminismo. Homens são isso, homens são aquilo… mas eu “preciso deles”, ou eu não “posso evitá-lo”.

Esse raciocínio emerge de uma visão desistoricizada, naturalizada e liberal do desejo que se foca completamente na sua contingencialidade e esquece de empreender uma séria e radical análise do contexto em que ele surge. Quando polarizamos a discussão da sexualidade em termos de “escolha” ou “não-escolha”, nós inevitavelmente a empobrecemos. Porque a única razão pela qual essa discussão importa é porque ela é formulada em termos heterossexistas. É apenas relevante afirmar que a homossexualidade não é uma escolha, na medida em que se fosse, ela seria uma escolha eticamente intolerável para essa sociedade.

Assim, ao reforçarmos a inevitabilidade do nosso desejo estamos mantendo intacta uma estrutura de poder que só cede em “tolerar” lésbicas na medida em que a lesbiandade seja absolutamente inevitável – e, por conseguinte, na medida em que a ciência e suas terapias de conversão “fracassaram” em nos “curar”, na medida em que a criminalização “fracassou” em nos punir, na medida em que a educação heteronormativa “fracassou” em nos amoldar, na medida em que a arte, a história, a literatura “fracassou” em nos convencer que não existimos e que, por conseguinte, nosso desejo também não deve existir.

Quantas de nós fomos eletrocutadas até que as terapias de conversão se provassem “fracassadas”? Quantas de nós foram presas e chantageadas pela polícia para que a criminalização se provasse “inadequada”? Quantas de nós vamos continuar sendo bombardeadas pela hegemonia absoluta de produtos culturais que nada dizem sobre nós e com os quais não nos identificamos, e aprendendo sobre uma história feita por e para héteros? Quantas mais são e serão apagadas nesse processo até que ele se prove “falido”? Até que possamos finalmente concluir que há algo de profundamente anti-ético em tentar formular e amoldar o mundo e a existência em termos heteronormativos?

Reforçar a noção de inevitabilidade do desejo (em termos individuais) não é só contribuir com o patriarcado, com a colonialidade, com a heteronorma e, em última instância, com o capitalismo, na medida em que é apresentar ideologicamente o desejo como uma contingência ahistórica, desvinculada de práticas socialmente construídas, validadas e impostas. Reforçar a noção de inevitabilidade do desejo é transformar, concretamente, a vida de gays, lésbicas e pessoas trans em um continuum de sofrimento que visa dar mostra – às pessoas cis e héteros, que detém o poder simbólico necessário para formular um julgamento de valor definitivo a esse respeito – de que o nosso desejo desviante é verdadeiramente inevitável, única hipótese em que ele é finalmente “tolerado”.

 

 

Maria Luíza Schreiner.

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